Lançamento de "Egos e Reversos" de Jandira Zanchi em Curitiba



No dia 25 de outubro, 14 horas, a poeta e ficcionista curitibana Jandira Zanchi participa da Flibi, Festa da Biblioteca Pública do Paraná,em bate papo  com a também poeta Priscila Prado. O tema: a poesia e seus leitores. Em seguida, 15 horas, lança seu primeiro livro de contos, Egos e Reversos, publicado pela Editora Singularidade. 
Conheça um conto do livro:
RAUL
Quase noite, resmungou para si mesmo. E ainda, ainda trabalhando. Não conseguia descobrir uma maneira de fechar o orçamento daquele projeto. Tudo transbordava pelas bordas, paciência, tempo, urgência... dinheiro faltando, o cliente iria procurar outro arquiteto. Todos assassinavam muitos todos os dias, assim, infiltrando desespero, descaso, nenhuma segurança. era preciso matar um leão por dia, tirar o certificado de campeão a cada semana, sobrevivente com mérito, classudo, guerreiro e elegante. Será? Era elegante? Até se achava um pouco..., embora, tivesse uma brutalidade ancestral, que reconhecia em si desde pequenininho, mesmo quando parecia uma menina, aí pelos três, quatro anos, tão bonzinho, inocente, os coleguinhas do maternal machucando, se prevalecendo. Não sabe como começara a mudar, deve ter sido algum instinto de mundo, o fato é  que boas maneiras e agressividade eram parte dele, quase uma pele. Comum, pensou, em empresários, executivos, profissionais liberais que tocavam a vida a partir de si mesmos, sem empregos estáveis, carreiras asseguradas.
O tempo passava... 46 anos, no terceiro casamento, dois filhos.. . fora  jovem a tanto tempo, agora esses 216 anos se arrastavam, pareciam eternos grilhões por todos os lados, contas, compromissos, trabalho se estendendo  no fim de semana, a filhinha de 5 anos, a esposa (17 anos mais jovem, seguia o padrão, ia diminuindo a idade da eleita), a casa dos sogros, uma classe média bem decadente, sempre o olharam com uma esperança, aquela ternura... que esperavam, se perguntava?  Herança, casa de praia, férias pagas, uma empregada bancada por ele... sempre, desde que conhecera a mulher, com um meio sorriso, observava a dança dos dois em torno dele. Por sinal eram pouco mais velhos do que ele. Tão submissos, servis, nem eram tão pobres assim, capaz que até tivessem mais estrutura do que ele, quase aposentados, funcionários públicos, não ganhavam muito, mas, tinham estabilidade, apartamento pago. Ele não entendia. E ria.
Impossível envelhecer, ganhar dinheiro e não ficar cínico, um pouco blasé. Embora 46 anos em um homem eram charme adquirido, acreditava. É, é, era assim que pensava, como seus pais, seus avós, era assim que dava certo. Tinha o cinismo, mas o toque se dava em idéias bem compartimentadas, que era um pragmático, não alucinava, sem estrutura, obviedades, respeito de porteiro, mocinha que te acha um bonitão que se deu bem, embora barrigudinho, sogros submissos, esposa idem, filhos consumidores, churrasco de fim de semana, uísque de fim de noite, às vezes um sexo mais safadinho, alguma cultura, bons queijos, bons vinhos, relações certas, alguns amigos verdadeiros, condomínio com piscina... me diga, sem essas coisas aí, como viver? Fora revolucionário, sonhador, artista, mochileiro e nada disso pagara suas contas. Era essa barriguinha, as têmporas um pouco grisalhas, a adorável arrogância de morar em condomínio de bem instituídos, aquela cozinha gourmet, empregada doméstica (cozinheira era para ricos, agora) uma viajem ou outra, algo tipo assim dei certo (em que? se perguntava). Não era infeliz, gostava de vida muito urbana, até de congestionamentos desde que levassem até os jardins. Sempre respirava com satisfação a atmosfera de pequeno recanto de volúpias e seguranças que aqueles portões abriam. Gostava de ver garotos e garotas arrumadinhos, vidas quase programáveis, divertimentos a quatro chaves. Receber casais de amigos, cultos, politizados, professores universitários, pequenos empresários, donos de lojas de antiguidades (que gostava de frequentar), um poeta, uma artista plástica... todos muito falantes, frequentadores como ele de museus, vernissages, lançamentos, estreias, e enfim, uma vida cultural um pouco vazia, mas,  estimulante algumas vezes, embora, desconfiasse que o melhor sempre era a boa comida, os vinhos, as mulheres, sempre algumas mulheres, oferecidas e agradecidas, procurando galgar não se sabia que degrau rumo a esferas desconhecidas. Homens também, para mulheres ou homens, também os jovens de ambição, estagiários, as mulheres, profissionais ou não, tinham seus momentos, pensava. Não a sua, tão insegura, olhos suplicantes, aprendendo, ainda, a receber, se esmerando em receitas e atenções para pessoas de quem não se sentia uma igual.  Estava na faculdade, tinha planos, quem sabe fosse para frente, tinha um temperamento meio evangélico, ele ria, cortara o barato a tempo, até ensinara a fumar maconha falando nisso... tão careta, mas, o corpo, firme,  magra, devia ter sangue negro, conversava bem, lia, seguia as indicações dele, de certa forma o purificava um pouco. Com ela era uma pessoa melhor, mais viva, quase honesta. Mas, quase, quem sabe na aposentadoria voltasse um pouco ao melhor de si. Agora tinha que ganhar dinheiro e quando a lei da sobrevivência toca a sua clarineta de muitos agudos é melhor se espertar. A vida tem fases e devem ser cumpridas.
Enjoava dela também, claro, mas ela lhe caia bem. Era a pessoa certa, talvez seu melhor relacionamento. Bonitinha, bom corpo, mas, sem aqueles exageros de mulherão. Bem feita de biquíni, se vestia bem, simpaticíssima com as vizinhas, boa mãe, sabia mimá-lo, usar uma lingerie, fazia dança do ventre, ensaio sensual, às vezes se decotava... sempre ansiosa, nervosa, mas, boa esposa, ótima arriscava. Não era ingênuo e podia se ver aos 60 ainda casado com ela que, turbinada, teria uma bunda maior, seios idem, o rosto tratado (já começara) por sessões e sessões ... um amante mais jovem, uns olhos acesos, e a insegurança? Também, sorriu, ela nunca seria segura como ele, mas, definitivamente o trairia, sairia com a filha no sábado a tarde para gastarem o dinheiro dele, ou pior, o dinheiro dela, queria ter loja, consultório. Teria, sim ela teria. Ele teria, mãe e filha, duas peruas em casa, estaria sentado em alguma cadeira do papai nas manhãs de domingo, jornal na mão, um suco verde de alguma gororoba, pois com certeza ela instituiria alguma dieta, esperando um filé de peixe feito na grelha acompanhado de salada , a sobremesa diet, um pouco mais decadente o condomínio, adolescentes que viraram adultos e continuavam morando com os pais claro, padrão de vida era importante, outros jovens, o namorado da filha. Talvez sua mãe tivesse vindo morar com ele, mas, bem mais provável que fosse a dela e que assumisse a cozinha e a coordenação das tarefas domésticas, afinal ela trabalharia... aos domingos viriam seus outros dois filhos, ou talvez não viessem se já não dependessem mais da pensão, algum velho amigo, já aposentado e que ainda se interessava pelas suas opiniões em arte e política.
Aí, suspirou. O pragmatismo quando abarcava o futuro vacilava um pouco. Da filha, sei lá, não podia fazer previsões ou exigências. Do jeito que estava sendo criada era quase certo que fosse essa superfície meio obvia. Quem sabe a mulher que era tão terna, que dormia com a cabeça sempre recostada no peito dele, que preparava as viagens que faziam só os dois, em um fim de semana ou outro, com um carinho e cuidado tão diferente. E ali, ele sabia, era só para os dois, cada momento, cada gesto, os programas imaginados, os livros levados. Quem sabe a vida lhe desse esse amor, por que cínico, prepotente e consumista, fizera o melhor no papel de macho provedor. Sacrificara, como todos os alfas e semialfas, a saúde, o bem estar, para tentar agarrar as cordas na mão. Não fora uma escolha. Aquilo era ditado por todos os meio e fins e seqüências. Eram as ordens do mundo. E aqui estava, trabalhando, trabalhando, lutando. Quase teve pena de si.
Foi até o bar, tinha um no escritório, e se serviu uma dose de uísque. Tinha uma lua lá fora. Elas continuam acontecendo, pensou. Sentiu falta de um cigarro. Talvez um doce. Compraria alguma coisa a caminho de casa. Luas, luas, selva, selva, lar, louros, vitórias. Tempo de vida, bem estar. Precisava ler mais. Andar um pouco ali pelo centro, olhar no rosto das pessoas.
Quando começasse a última etapa, ele teria um reino, desses pequenos á semelhança dessa classe de novos gerentes a que pertencia, mas, bem montados em carros,moradias, exemplares e de fácil manutenção. Enfim... seria respeitado e porque isso era tão importante? Lembrou do Aroldo, aquele menino brilhante da faculdade, indócil, faltando às aulas, cheio de discursos e sem lei. Aroldo já fora seu empregado, os olhos baixos, sofria processos de uma ex-esposa porque não pagava a pensão do filho. Fazia pequenos trabalhos, sempre ás voltas com escritórios de arquitetura e agendas de publicidade, sempre vivendo de pequenos ganhos e bebendo e tendo casos, algumas vezes tórridos, com mulheres de 30 ou 40 quase tão insanas quanto ele. Aroldo tinha uma úlcera, estava inchado, as vezes chorava, sempre que o via tentava abraçá-lo... e pedia dinheiro emprestado. Como pedia...
Aroldo era seu símbolo do que não queria ser ou ter ou não ter... era a imagem de como o mundo tratava os que não usaram a sela no cavalo dado. Não existia comiseração, segunda chance, mãos estendidas para ajudar de fato, amigos reais, sentimentos nobres. Lia nos livros, mas, agora não. As seitas de plástico se moldaram segundo um braço de Apolo, se deitaram no derrame final das classes instituídas, chamaram a si todas as fontes e requebros, e ficaram impiedosas. Porque não eram, apenas requebravam pequenos modos de elite em condomínios reluzentes, mas não tão caros, viagens em pacotes e rotas mais econômicas, bons jantares, a preços razoáveis, vinhos europeus, mas não custavam um salário..enfim. Esse terrível equilíbrio dos emergentes, dos quase.... quase, sempre os encontrava amigos e instituídos ou conhecidos dos grandes, sempre juntos, asseados, emplumados.
Não seria Aroldo, nunca. Preferia os chifres, a filha dondoca, o genro interesseiro, o jogo das aparências, essa ridícula alegria. Afinal, alguns deles chegavam aos mandos em vias menores, municipais, até estaduais..enfim, havia um chão e uma promessa.Agora,para isso, era fechar aquele orçamento, concluir o delicado equilíbrio entre o chão e esse patamar de quinto andar, podia não ser uma cobertura, mas tinha vista, fazia vista... os olhos agradecidos da esposa o confirmaram. Vencia, ainda que não soubesse como ou exatamente a quem. Feliz ou astuto, venceria, se sentaria em sua varanda como um pequeno nobre, desses esculpidos com um pouco de força, que venceram na corte e não no campo, que os amigos respeitavam, que aquietavam mulheres e mocinhas, que podia jorrar opiniões nos jantares casuais ou familiares. Aquele tipo que faz um genro se sentir inseguro, depois procurar imitar e pedir conselhos e, claro, enganar, de comum acordo com a filha ou não. Seria um desses para os quais tantos mentem, por bem ou por mal, a vida não lhe negaria o sal. 




 Jandira Zanchi é fic­cionista poeta e editora (Singularidade). Publicou A Janela dos Ventos em 2017 pela Editora Singularidade, Área de Corte (2016, Patuá), Gume de Gueixa (2013, Patuá) e Balão de Ensaio (Protexto, 2007). Integra o corpo editorial de Amaité poesias & cia.

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