A poética de Jean Narciso Bispo Moura: de narciso e aqualouco todo poeta tem um pouco - Fabiano Fernandes Garcez


O aqualouco banha-se com água.
O louco banha-se com terra
O poeta banha-se com palavras
Eu divido os três em 24 horas
Eu sou o aqualouco
Louco
Poeta
Divisão inexata

Jean Narciso Bispo Moura, além de professor e filósofo, é uma voz potente no cenário contemporâneo da poesia, autor de cinco livros e desde do seu primeiro já tem uma poética própria, sólida e madura. Em sua obra é evidente a lapidação, o burilamento que cada bom poema necessita. Em sua maioria, os poemas de Jean Narciso são curtos, com grande poder de síntese, de ritmo e musicalidade da fala cotidiana.

A escolha vocabular é precisa, sempre acertada semanticamente, por vezes alguns vocábulos não são de uso corriqueiro, coloquial, que destoa de todo o poema, provocando sempre um agradável estranhamento ao leitor, que passa a ter certeza que mesmo emulando um tom e uma realidade conhecidas, cada poema é um objeto de linguagem e por isso arte, sobre isso Jakobson diz:

A poesia vive em conflito com o tempo e o pensamento e manifesta essa tensão na linguagem, construção estética que dialoga com a história, pessoal e coletiva, ao mesmo tempo em que afirma sua própria identidade como artefato artístico
JAKOBSON, R., TYNIANOV, J. Os problemas dos estudos literários e linguísticos.

 Já em seu primeiro livro A lupa e a sensibilidade (2002) mostra-se consciente que poesia é trabalho árduo, nem sempre valorizado, mas sério e já dá a tônica que vai percorrer por todo seu trabalho: o fazer poético. Veja o poema O menor:  Na assembleia da plêiade, /Sou o menor,/Dentre os gigantes e robustos poetas./ /Eu próprio reconheço minha pequena estatura e/Fragilidade/E me esquivo quando imaginariamente penso/Que me convidam para um sangrento duelo.

Mesmo que cante a esquiva e a recusa pela briga ou comparação a outros poetas, baseado na modéstia, percebe-se que Jean é um poeta seguro, mas questiona o poeta contemporâneo na plêiade do cânone poético.

Como o poeta contemporâneo pode se destacar em meio ao rol de poetas que o ensinaram e o inspiraram? Como se fazer ressoar em meio aos escolhidos da própria poesia contemporânea? Sabemos que não basta apenas escrever bem para se obter algum destaque no campo literário, sobretudo para um poeta tímido da Grande São Paulo.

Em cada poema deste e dos livros seguintes o poeta entra em um duelo também com as palavras, mas segundo Drummond, o poeta não é aquele que luta com palavras? Jean Narciso não torna essa luta vã, mesmo que repetida e diária, pois é dessa luta que o poeta se torna não só senhor de seu poema, mas senhor da palavra em Palavras IIAlgumas palavras são escravas/E outras soberanas./As escravas logo se doam /Ao senhor da palavra./ /As soberanas são muitissimamente cobiçadas,/Aguçando o ávido desejo do senhor da palavra./Porém, elas não se reduzem ao seu poder senhorio./ /Mesmo relutantes, as soberanas/Caem na rede do senhor da palavra.

É perceptível em vários poemas o espectro dos grandes mestres da poesia, sobretudo os modernistas, que o inspiram e o referenciam, como Drummond, já citado, Cabral, Bandeira entre outros. No poema Mestre, Jean Narciso mostra que os mestres são aqueles que guiam, mas sem nos tomar pelas mãos:

Do que seria de mim/Ou de você/Se não fosse o mestre?/Seríamos do trânsito/O mau pedestre/ /Talvez um cativo da ignorância.

O poeta e crítico Claudio Daniel em seu artigo: Geração 90: uma pluralidade de poéticas possíveis diz:
A poesia brasileira recente, e em especial aquela produzida na década de 1990, reflete de maneira enfática essa tensão com o tempo, o pensamento e a tradição criativa.
DANIEL, Claudio. Geração 90: uma pluralidade de poéticas possíveis. In: Protocolos críticos. São Paulo: Iluminuras / Itaú Cultural, 2008.


No segundo livro: 75 ossos para um esqueleto poético (2005), Jean Narciso se mostra mais ousado como poeta, a ponto de apresentar maior arrojo estético. Em muitos poemas, sobretudo os mais longos, podem ser considerados poemas em prosa. Veja um exemplo no poema IV. Custódia: Não tenho bens,/Minhas vestes são estes trapos que ofendem os teus olhos e nariz/Outrora, o mais fino linho/cobria de pompa o meu corpo./ /Hoje, já não tenho casa/e tampouco uma gota de esperança/para que eu possa ter um olfato/e, assim, sentir o perfume discreto da vida./ /E agora nesta lastimável condição de semivivo/Recebo a custódia/de almas samaritanas/que quitam o meu parcelado e diário boleto/emitido pelo estômago./ /E são as almas samaritanas/que me livram do eminente risco de ter a minha lucidez confiscada.

Em comparação aos poemas de seu primeiro livro, os 75 poemas deste, - numerados, mesmo havendo título -, trazem um tom mais prosaico e versos muito mais imagéticos, como também a ampliação de temas: como por exemplo a humanização do objeto:  A bala perdida encontrou um inocente/e cavou para ele uma cova, maldita bala!/Tu deverias sair do teu estado de coisa,/Para sentir a dor de uma mãe cujas lágrimas/Fogem do rosto/Como as larvas de um vulcão.

                No poema XII. Os braços há a coisificação do homem: Os meus braços já não estão crédulos/Que a esperança os sustentam./Dobro o joelho em direção/Ao solo, em sinal, de desistência,/E não pareço sentir desejo de me erguer./Tombado,/Me sinto coisa./Pois não há humanidade/Em um ser tombado!

O tempo é um tema bastante abordado por Jean Narciso, veja este poema, talvez o ponto alto do livro.: LXVII. O tempo: O nosso tempo/Foi castrado/Retiraram brutalmente o seu falo,/E sem compaixão nos oferecem cozido/Para que possamos comer./ /O tempo imaginário quis ser vicário,/Porém, nunca pôde preencher/A utopia da donzela.../ O tempo contemporâneo algozmente acoima, pois já não pode/ Dormir debaixo do lençol da mulher./Naqueles dias que a figura masculina,/É um retrato na parede./ /O tempo sem falo,/O tempo sem amor,/É castrado,/É impotente.

O falo do tempo, além de ser uma belíssima imagem para representar a ação do tempo, que nos marca e nos consome, será recorrente em outros poemas do livro posterior, Excursão Incógnita (2008): O falo desmedido do tempo/Come e arrebenta o ânus da alma./É tanta desgraça nos olhares/E estômagos fechados para a fartura./Aviões jogam do alto/Cereais roubados.

                Jean Narciso, como todo bom poeta, é adepto de escrever séries de poemas sobre o mesmo tema, porém tem o costume de coloca-los distantes, diferenciando-se de outros poetas, mas observe Tempo recente e verifique a semelhança como o poema acima: O falo maníaco do relógio/Estoura o ânus da alma/A guerra mostra que o nosso tempo excreta pela boca/E não tem nenhuma paixão pelos filhos/E bisneto da ampulheta.

Nesta Excursão Incógnita Jean Narciso volta aos poemas mais concisos e deixa de lado o tom prosaico do livro anterior, alguns temas recorrentes de sua obra, como por exemplo a relação do homem moderno com a religiosidade que deve, mais do que ser dita e mostrada, – aos moldes dos hipócritas -, deve ser vivida na vida e no corpo, sendo religiosidade é praticada na vida física, não apenas a espiritual, veja o poema Cruz: A cruz é maior que a perdição da carne?/A palavra profética cabe apenas em meu ouvido/Não bombeia o sangue do coração/O poeta não serve para ser sacristão do divino./A palavra conforma Salomão/E não a carne que desabita o evangelho.

Ou no poema Corpo ateu: O pensamento quer ser maior que a minha cabeça/O poema ser gigantesco e rival/De todas as constelações/Não percebe que é espantalho geográfico/Pois lê na carne alheia/as coisas às avessas. /O corpo mudo e ateu não acredita na metafísica/E nem no chão dos anjos./Gosta de apalpar apenas a areia humana.

                Muitos poemas trazem inovações estéticas como a presença de símbolos, como em A trajetória dos soltoMais e Cruz, ou a escrita em caixa alta em Tatuagem, até um flerte com o concretismo:
Suicídio Concreto

CAOS COISA  SACO
SACO O CAOS
CASO
SOCA O ACASO.

                Outro fato bastante interessante na obra de Jean Narciso é a questão do duplo, bastante recorrente na literatura universal, Dostoievski, Kafka, Saramago talvez os mais significativos, o mais intrigante e curioso, no entanto, é saber que o poeta traz Narciso em seu nome, talvez o personagem da mais antiga representação dessa questão. Dessa forma o aqualouco, personagem humorístico que realiza saltos ornamentais com trajes de banhistas do início do século XX, é visto como um bufão, neste poema e em Memórias secas de um aqualouco e outros poemas (2011). O aqualouco de Jean Narciso apresenta uma dualidade interessante, pois é ao mesmo tempo a representação do poeta, não Jean Narciso, mas o poeta contemporâneo, ser problemático e de difícil inserção no mundo representa também o homem contemporâneo vivendo problemas muito parecidos, um Narciso às avessas. Assim nesta nova antologia Jean Narciso vai além da boa poesia, porque faz de cada poema um jogo analógico. Veja o poema Três: Dentro da piscina/Dentro de si mesmo/Come o pão/E reparte o fermento com a palavra/O aqualouco desesperado com a rústica falta de saliva/Vê a multidão de águas/Cuja saliência impenetrável com os olhos/E surta por não ser um silencioso falo/Angustia-se/Silencioso e só/Sem água para abrandar a sede.

                Neste poema o que nos chama à atenção para sua forma, mais precisamente seu ritmo, perceba a aliteração dos versos finais: Cuja saliência impenetrável com os olhos/E surta por não ser um silencioso falo/Angustia-se/Silencioso e só/Sem água para abrandar a sede. A repetição do fonema sibilante /s/ torna esses versos muito sonoros e traz um tom quase sussurrante que demonstra a solidão do eu-poético, além de trazer também a belíssima antítese do aqualouco dentro da piscina e sem água para abrandar a sede.

                Jean Narciso põe o leitor mais atento em uma sala de espelhos, pois utiliza uma dúbia e dupla representação, assim o aqualouco indeciso e estagnado no momento do salto, é o poeta, por vezes, ridicularizado na vertente mecanicista, pragmática e mercadológica da sociedade, o tornando um ser desconexo com o tempo e o mundo, em outro viés de análise é o homem contemporâneo, alvo de inúmeras patologias psicológicas como a angústia, a ansiedade e a depressão que, ao mesmo tempo, busca não só uma inserção, mas uma adequação a esse mundo e esse tempo. Veja, outro exemplo em Catorze: O aqualouco/Vê piscina e redenção/Abre o dia/Solicita o salto/Uma criatura angelicamente caída/Quer ser senhor do seu pulo/ /Este hebreu se nega/Vai e volta/Rejeita dar o pulo/Turbilhões de saltos/Foram dados dentro de sua cabeça.

A tentativa de eu-lírico de lidar com as palavras e o mundo literário, ou se autoafirmar ou negar-se como poeta é a tentativa do homem contemporâneo de lidar interiormente com o mundo exterior em que, ainda, se valoriza as aparências e o superficial. O poeta, neste caso, aqualouco ou não, é quem questiona esse mundo e o seu papel nele, veja outro exemplo no poema O labirinto e as paredes: As minhas palavras são paredes/Altas médias e baixas/No conjunto delas anuncio um labirinto/Deite no chão/Tente escalá-la/O desnível das paredes é a beleza/De toda minha engenharia/As palavras não têm teto/Labirintos não são casas que albergam homens e mulheres em dias de sol ou/Chuva/O labirinto não tem sequer intenção de sê-lo/É construção é objeto arquitetônico/Artefato para decorar as casas dos urbanistas da palavra./Não sou poeta/Sou pedreiro./Domino apenas pouquíssimos e frágeis vocábulos/Errata: Sou apenas servente que descobriu na construção a arquitetura das/Palavras.

                O aqualouco de Jean Narciso é o Bufão, Bobo da corte, personagem que tinha a função de entreter e divertir o rei e a rainha, no entanto, muitas vezes, eram severos críticos de seus governos, porém em sua obra poética, Jean Narciso, usa o aqualouco como alguém atormentado por esse papel duplo, apesar de perceber todas as falhas de um sistema social, se vê obrigado a participar dessa sociedade e sofre as consequências de valores e regras as quais questiona ou não concorda.

                Personagens análogas ao aqualouco há outras, como o Alpinista: Escalo a noite com poemas mudos/Anseio ouvir a voz de pícaro/A escalada sem mãos/O medo arranha o sossego/Cair do alto/É bom para esquecer no sofá a escalada.

                Ou o alpinista em Travessia: Atravessar a corda bamba/Do grão conhecimento/Andando com o iminente/Risco da tragédia/Sendo que o desequilíbrio dos passos/Leva o homem/A espatifar-se no chão da loucura/Morrendo assim a consciência lúcida/Do homem que apostou como ninguém/Para pisar são e salvo/No chão nobre da genialidade.

                Nestes dois poemas encontramos ambos os personagens, o alpinista e o equilibrista, representando o poeta, leitor ou criador: (Escalo a noite com poemas mudos) (Atravessar a corda bamba/Do grão conhecimento) que se utiliza da literatura/conhecimento para a travessia ou escalada e em ambos os casos a angústia pela queda: (Cair do alto/É bom para esquecer no sofá a escalada.) (Sendo que o desequilíbrio dos passos/Leva o homem/A espatifar-se no chão da loucura/Morrendo assim a consciência lúcida). Esses poemas, no entanto, não poderiam ser a escalada e o equilíbrio do homem comum pela vida? Em A necessidade da arte Ernest Fischer diz:

É claro que o homem quer ser mais do que apenas ele mesmo. Quer ser um homem total. Não lhe basta ser um indivíduo separado; além da parcialidade de sua vida individual anseia uma “plenitude” que sente e tenta alcançar, uma plenitude de vida que lhe é fraudada pela individualidade e todas as suas limitações; uma plenitude na direção da qual se orienta quando busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significação.
FISCHER, Ernest; A necessidade da Arte – 9. Ed. – Rio de Janeiro: LTC, 2007.

O homem comum é trabalhador inserido na luta diária, sendo apenas objeto, massa de manobra e, principalmente, matéria prima em um sistema opressor que o deixa sempre às margens de seus lucros e benefícios, não questiona este sistema por ser regido pelos instrumentos midiáticos que é a voz deste sistema.

E onde esse homem deixa de ser objeto consumível e passa a ser sujeito? A arte é a resposta. É na arte em que homem busca sua humanização e a arte do poeta é o poema, por isso que o poema de Jean Narciso é esse jogo duplo arte/vida, poeta/individuo comum, linguagem criação/realidade. Décio Pignatari em O que é comunicação poética explica:

Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs. coisa. Sabe (isto é, sente o sabor) que a palavra “amor” não é o amor — e não se conforma... A resposta para adivinha mallarmaica: a flor que está ausente de todos os buquês é a palavra flor.
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo, Ateliê Editorial, 2011


A cada novo livro Jean Narciso solidifica sua poética, em Psicologia do efêmero (2013) não é diferente. Os poemas, em sua maioria, são ainda mais curtos e com um tom mais coloquial, ou seja, a ocorrência daqueles vocábulos que destoavam do restante do poema é menor.

Em Pavor e pseudoarremedo o diálogo com Drummond é evidente, como também é evidente a luta do poeta contemporâneo pelo campo literário, uma vez que em que ele está só, sem um grupo ou amigos para alavancar sua obra e não consegue apenas por seus poemas ou seus livros penetrar neste Parnaso dos agraciados das grandes editoras ou dos cadernos literários: o poeta que xinga a mãe dos outros/sem motivo/delito fútil/só para usurpar do ouvido público dos transeuntes//Poeta federal/que não atende cartas/não afere e-mail/dos que não tem a marca d´agua/dos chanceleres/e dos fidalgos da palavra.

O tema da religiosidade, volta a aparecer, veja esse belo exemplo que a adoração religiosa é confundida com a sexualidade, veja em Anjo romano: Anjo de falo romano/adorado de modo bucólico/pela mulher helena/que todos os dias passa por aqui/esquecendo o aspecto facial da obra de arte./Grácil helena de cintura vulcânica/de erupção inédita/oculta infinda maciez na boca/Percurso incomum na língua/hoje quando amanheci estátua/a surpreendi rezando de joelho/para o meu anjo.

O aqualouco, e sua dupla e dúbia representação, também retorna em alguns poemas, veja o exemplo no poema que dá nome ao livro Psicologia do Efêmero: O aqualouco sonhou em seu vasto mergulho do pensamento/Conhecer a psicologia do efêmero/Douto-louco/Mordisque a fagulha do pêndulo/Que suspira no teu corpo/Tudo para ti/é ideia de existir/Sortida em bilhões/De futuros não existir.

Outro personagem recorrente em sua obra que também está de volta é o homem-palavra, ser que é o amálgama do poeta/homem pensante, mas aqui revolta-se contra o que representa e busca por liberdade Estranha vontade: Bateu em mim/Uma estranha vontade de ser pássaro/Pensar conforme a direção do vento/Não ser mais o homem-palavra/Mescla de audácia e tédio.

Outro exemplo da busca pela liberdade pode ser visto em Marcador de tempo, perceba que a liberdade almejada está no vocabulário também, a trocar do formal verbo no infinitivo dar, pelo coloquial dá, conjugado na terceira pessoa: Suspensão do relógio/Agora é possível dá uma gravata no tempo/Enrijecer os ponteiros/E retardar a chegada natural do fim.

E esta busca libertária por novos voos é perceptível, tanto no campo formal , A superlativa teoria do fracasso e Conversa com o caramujo, que utilizam a estrutura de diálogo, como no campo temático, um bom exemplo é belíssimo Geografia das horasTudo que está fora da epiderme/é estrangeiro/as necessidades são diluídas/na piscina presente e futura/piscina erguida dia a dia/na geografia das horas/as céleres placas tectônicas deslocam o centro/de nossos pés no universo/mexendo em nosso familiar pavimento/tornando alpes,/num piscar de olhos/em relevos.

Neste poema o ambiente de mudança ainda é a piscina, cenário do aqualouco, porém aqui suas águas são águas de mudança, assim como o mundo ao seu redor muda, porém essa mudança tem um aspecto positivo, e em todo Psicologia do efêmero a positividade é maior, o eu-lírico não é mais o ser estagnado e angustiado, apesar de não ser parte do mundo há possibilidade de boa convivência com o diferente, afinal se Tudo que está fora da epiderme/é estrangeiro, é melhor aprender e viver melhor com isso.

Enfim, chegamos ao mais recente livro de Jean Narciso Retratos Imateriais (2017), onde o poeta amplifica o que sua poesia trazia de peculiar.

O código para decifrar a poesia e o mundo criativo de Jean Narciso é a metalinguagem, poemas que retratam o fazer poético, pois o eu-poético que ao contrário de Alberto Caeiro só entende a relação do mundo consigo mesmo mediado pela poesia. É pelo fazer poético que Jean Narciso, filósofo de formação, nos apresenta a tentativa de não apenas compreender o mundo e a si mesmo, pois neste mundo o poeta/indivíduo, sujeito/objeto é parte integrada e ao mesmo tempo dissonante do seu tempo e mundo. Uma voz de vozes. Talvez a busca íntima pela poesia perdida no cotidiano, poesia que não tem espaço no mecanicismo pragmático do capitalismo. Galáxia é um ótimo exemplo e ainda dialoga com Haroldo de Campos, mestre concretista: cada estrela é uma palavra/palavras bem entrelaçadas formam constelações/o encontro garbosofaz nascer uma espantosa galáxia.

Cada poema deste Retratos Imateriais é um grito de resistência, é a prova que este mundo que nos cerca, por mais que queiram nos forçar a acreditar não é natural, por isso cada poema soa como grito de socorro, procura da liberdade recorrente e inerente ao próprio homem, então a poesia, arte de criar linguagem é meio e fim. Octávio Paz, poeta e crítico mexicano afirma:

(...) Pois o homem é inseparável das palavras. Sem elas é inatingível. O homem é um ser de palavras. É o oposto (...) Assim, num extremo, a realidade que as palavras não podem exprimir; no outro, a realidade do homem que só pode ser exprimida em palavras.
A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.
PAZ, Octavio. O poema, in O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.38.

Veja o poema fugidio: as palavras, no poema, são afáveis desertos/poetas audazes/atravessam noite e dia/em busca de ofertar oásis.

Linguagem esta que, por vezes, passa longe do tom prosaico e coloquial, Jean volta a fazer faz uso de um vocabulário erudito, mas sem cair no preciosismo desnecessário. É através da linguagem que a realidade vira ideia, a ideia vira verso e o verso, enfim, vira verdade, veja em ponte suspensa: a linha torta da linguagem constrói/ponte suspensa em nosso córtex cerebral.

Assim o homem ganha textura, recheio e cobertura artística e como consequência a vida também. O leitor tem acesso a esse raro e belo exercício de pensar e realizar a vida e o eu-lírico de Jean Narciso é o cicerone que apresenta e guia os olhos e olhares atentos do leitor por caminhos sinuosos da busca pelo humano na realidade fria e dura de nosso mundo e tempo paquidérmico.

índio que não conhece civilização/é como me sinto/o poema é uma mala que levo em todas as minhas viagens/eu que nunca deixo a vista o paquidérmico sonho/sinto em todas as estações do ano/um sabor incurável de inconformidade.

Essa busca que para o poeta é essencial e individual aos olhos do leitor passa a ser social, sem nunca deixar de ser singular. É esse o jogo dialético que nos interessa em Retratos Imateriais como em toda obra de Jean Narciso ou toda a poesia e toda a arte.


Fabiano Fernandes Garcez nasceu em 3 de abril de 1976, na cidade de São Paulo. Formou-se em Letras, é professor de língua portuguesa. É autor dos livros Poesia se é que há (2008), Diálogos que ainda restam (2010), Rastros para um testamento (2012) e Em meio ao ruídos urbanos (2016), finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura 2017. Faz parte do grupo idealizador do Tragos e Papos, discussões literárias na Livraria Nobel (Guarulhos) e produtor do programa Sala de Leitura no Youtube.





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